terça-feira, 23 de março de 2010

pé na trilha,por Bernardo tabak

A viagem estava chegando ao fim. Acordei com um misto de sentimentos e sensações. Ao mesmo tempo em que me sentia um pouco cansado para percorrer oito horas de trilhas – ida e volta – rumo ao Fitz Roy, uma das montanhas mais famosas da Argentina, a satisfação pelo dever cumprido, de estar finalizando uma das mais incríveis viagens da minha vida, me enchia de disposição para, ao menos, fazer uma caminhada curta na capital argentina do trekking. Como só passaria apenas um dia em El Chaltén, não poderia deixar de conhecer algumas das trilhas que fazem a fama da cidade.

El Chaltén está de tal forma mesclada com a natureza ao seu redor que uma das principais vias da cidade, a Avenida San Martin, termina e se transforma no começo da trilha para o Fitz Roy e o Cerro Torre, as duas montanhas que são o objetivo principal daqueles que visitam a menor e mais jovem cidade da Argentina. Eu, Stav e Aron, companheiros de viagem israelenses que o destino acabou unindo em El Calafate, partimos para a caminhada.


A trilha começa bem sinalizada, com placas indicando os percursos e com informações de segurança e conservação ambiental indispensáveis, como manter a atenção, não fustigar os animais ou retirar plantas, e trazer todo o lixo de volta à cidade. O começo é uma subida de cerca de meia hora, bem íngreme e cansativa. Mas logo somos recompensados com o visual incrível de um vale cortado pelo Rio de Las Vueltas, que, como o nome já diz, é bem sinuoso, cheio de curvas.

O caminho dura mais uma hora, mais plano, com poucas subidas e descidas, em grande parte por dentro de bosques. Na trilha, assim como em Torres del Paine, novamente escuta-se línguas de várias partes do mundo, faladas por gente de idades variadas. Depois de quase duas horas, caminhando e parando para admirar as paisagens, chegamos ao mirante do Cerro Fitz Roy.

Uma enorme placa orienta os visitantes com relação aos nomes de cada um dos picos avistados. Como de praxe, e como escutei em vários momentos da minha viagem, o cume do Fitz Roy está encoberto por nuvens, apesar do céu aberto e do dia ensolarado. Lembro-me que, em Ushuaia, uma família de gaúchos que havia saído de Bagé rumo ao fim do mundo havia me dito que tinha desistido de passar por El Chaltén, pois “disseram que por lá o tempo está sempre nublado e raramente se consegue ver o Fitz Roy”.

Parecia que estávamos fadados, após milhares de quilômetros de viagem, a também não conseguir ver a famosa montanha de El Chaltén. O que não tem solução, solucionado está. Sentamos em uma pedra. Olhávamos a natureza ao redor que, mesmo com a montanha mais famosa encoberta, era encantadora. E conversávamos, beliscando nossos lanches, entre eles um delicioso “dulce de leche” (doce de leite) argentino. Em muitos momentos falávamos sobre os problemas do Oriente Médio e do Brasil. E muitas vezes fiquei surpreendido em perceber como a violência na minha cidade, Rio de Janeiro, parecia me afligir mais do que o conflito entre israelenses e palestinos aos meus amigos.

Eis então que, sem qualquer mudança no clima, sem sentir qualquer lufada mais forte de vento, as nuvens se dissiparam e o topo do Fitz Roy se mostrou soberano na paisagem. Sem perder tempo, levantamos e começamos a bater fotos. Mas a montanha foi generosa e decidiu se manter descoberta por mais tempo, para nossa intensa e simples contemplação.

Hora de tomar o rumo de volta. A última vez em que eu iria retornar de uma trilha nesta viagem. É quando começa a bater aquela onda de recordar tudo o que tinha conhecido, apreciado, enfim, tudo o que tinha vivenciado nesta grande aventura. Mas, como a viagem ainda não tinha chegado ao fim, um bando de pica-paus quebrou a minha sequência de lembranças. Nunca vi esses pássaros ao vivo, sequer em fotos, mas apenas no desenho animado que marcou a infância da minha geração de trinta e poucos anos. São engraçados e curiosos, alguns com a cabeça vermelha e o tufo de penas na cabeça, exatamente como a figura que povoava meu imaginário. E não aparentavam receio algum dos vários turistas que pararam na trilha para os observarem. Tirei várias fotos e fiz alguns vídeos deles abrindo tocos com fortes bicadas que, só de olhar, já faziam minha cabeça doer.

De volta ao albergue, à noite, banho tomado, abri uma das garrafas de dois litros de vinho chileno que trazia no carro e comemorei minha última trilha com os israelenses, e com um grupo de alemãs e holandesas, além dos donos do albergue, um casal de portenhos da melhor qualidade que havia fugido da “loucura” de Buenos Aires para viver em El Chaltén. Imagina se soubessem da situação caótica das metrópoles brasileiras.

E, nesta celebração, agradeci mentalmente ao Fitz Roy por ter me dado de presente uma paisagem deslumbrante, que muitos diziam ser difícil de presenciar. Certamente, foi a melhor despedida que poderia ter nesta viagem.

by:Bernardo Tabakbernardo

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